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Jorge Da Silva é cientista político. Doutor em Ciências Sociais pela UERJ e professor-adjunto / pesquisador-visitante da mesma universidade. Professor conteudista do Curso EAD de Tecnólogo em Segurança Pública (UFF - CEDERJ / CECIERJ). Criado no hoje chamado Complexo do Alemão, no Rio, serviu antes à PM, corporação em que exerceu o cargo de chefe do Estado-Maior Geral. Foi também secretário de Estado de Direitos Humanos/RJ. É vice-presidente da LEAP Brasil ('Law Enforcement Against Prohibition Brazil' (Agentes da Lei Contra a Proibição)).

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A SABEDORIA DE TOM JOBIM. FLUXO E REFLUXO DA VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO

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Corre a lenda: o maestro Antônio Carlos Jobim teria afirmado certa feita que só haveria justiça social no Rio quando todas as pessoas morassem em Ipanema. Ironia do mestre. Talvez quisesse chamar a atenção para o fato de que a cantada-em-prosa-e-verso harmonia da sociedade carioca era, e é, um exercício de auto-ilusão, ou manifestação da síndrome de avestruz, ou outra coisa. Ora, como esquecer que a organização sócio-espacial da cidade é herança do longo período (quase quatro séculos) em que a mesma conviveu com o maior e mais duradouro regime escravista da história moderna no mundo? De toda coerência, ao contrário, é concluir que a hierarquia dos tempos monárquico-oligárquicos permaneceu enquistada na sociedade, e que urge investir na integração social da cidade como um todo.

O Fluxo

Com a expressão fluxo e refluxo, tenho em mente certo deslocamento da violência. Parto do contexto de quatro ou cinco décadas atrás, quando ela não despertava o interesse dos grandes jornais, pois era tida como circunscrita à periferia, em particular à Zona Norte. Tema importante só quando a vítima, ou o autor, pertencesse à chamada “classe média” da Zona Sul, como, por exemplo, em casos como o da morte da jovem Aída Curi, vítima de tentativa de violência sexual e jogada do alto de um edifício na Avenida Atlântica em 1958, ou o do crime do Sacopã em 1952, também na Zona Sul, do qual foi acusado um oficial da Força Aérea, o então tenente Bandeira. Fora daí, a indiferença, pública e privada, certamente porque vítimas e autores dos crimes violentos (assassinatos, roubos a mão armada, tiroteios e facadas) eram, em maioria, oriundos do mesmo estrato popular, e os crimes, praticados no seu espaço. A criminalidade só era tema importante em jornais que circulavam na periferia (jornais dos quais, na expressão em voga, “saía sangue, se espremidos”), como o Luta Democrática, do lendário deputado da Baixada Fluminense Tenório Cavalcanti. Aquela violência “distante” virara motivo de chacota em programas humorísticos de rádio e televisão. Em tom jocoso, o apresentador do programa “Patrulha da Cidade”, Samuel Correia, se referia a Duque de Caxias, já então violento município da Baixada, como “a terra onde a galinha cisca pra frente”. Com o tempo, a violência do crime se espraiou, atingindo as áreas consideradas nobres. A segurança, então, passa a ocupar as páginas e as telas, e torna-se prioridade pública, para a qual são canalizados grandes recursos governamentais. E muito discurso. Esse foi o fluxo de lá para cá.

O Refluxo

Ultimamente, ao observador atento não escapará o fato de que, a toda evidência, os acontecimentos criminais estão voltando a se concentrar naqueles espaços onde antes eram, de certa forma, admitidos (agora incluída também a Zona Oeste). Pelo menos é o que se depreende da leitura dos jornais e do noticiário da TV e do rádio, que nos dão conta de assaltos, assassinatos, bondes de traficantes, arrastões, ataques a policiais etc. que vêm ocorrendo com crescente freqüência nesses espaços. Ou a violência refluiu para o lugar de onde tinha vindo ou estamos diante do que os criminologistas chamam de segurança subjetiva (se não falo nela, é como se não existisse; se falo, existe…). Não tardará que, em algum programa de TV ou rádio, um apresentador ou humorista volte a fazer graça com a célebre frase de Samuel Correia.

Em suma, se a violência reflui para a periferia, resta saber se isso ocorre por um movimento espontâneo ou provocado. Certo é que, com o fluxo, tivemos uma espécie de socialização da violência. Restava a socialização da segurança, o que não aconteceu. E a oportunidade de integração vai-se perdendo diante da força da tradição… Na verdade, aparentemente, o que Tom Jobim queria dizer é que a solução era, não que todos fossem morar em Ipanema, e sim que Ipanema, metáfora, se deslocasse para a periferia. Esse é o verdadeiro desafio. Utopia? Pode ser, mas utopia mesmo é imaginar a possibilidade de manter a violência represada num dique distante, guarnecido pela polícia, sem risco de rompimento ou do efeito bumerangue.

 

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6 comenários to “A SABEDORIA DE TOM JOBIM. FLUXO E REFLUXO DA VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO”

  1. rita maria nicola disse:

    Bom dia Professor jorge,

    O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma terceira edição de um Programa Nacional de Direitos Humanos apresentada pelo governo federal. Por si só, isso já demonstra uma preocupação do Estado brasileiro com a situação desses direitos em território nacional. Mais positivo ainda é se este programa é atualizado periodicamente em diferentes espaços de diálogo e interlocução com a sociedade civil. No caso da terceira edição do PNDH, estamos falando de um processo que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país. Um processo que deve ser saudado para que, imediatamente, se possa cobrar deste mesmo governo um compromisso com o mesmo.

    Infelizmente, as recentes alterações sofridas pelo PNDH-3, via decreto presidencial, revelam a outra triste face desta moeda. O Decreto 7.177, de 12 de maio de 2010, alterou sete e revogou duas ações do Programa Nacional. Ficou explícito que, apesar de despontar como promissora potência mundial, o Brasil ainda se curva a setores autoritários com grande tradição na arte de manter o país, simbólica e estatisticamente, no “terceiro mundo”.

    Desde a publicação do Decreto 7.037/2009, que institucionalizou o PNDH-3, bispos católicos, militares, latifundiários e donos da mídia bombardeiam a sociedade com suas opiniões sobre as diretrizes que buscam a redução dos conflitos no campo, o respeito ao Estado laico e aos direitos da mulher, à memória e à verdade e a democratização das comunicações. Agem como uma tropa, colocando os meios de comunicação na linha de frente da artilharia daquilo que consideraram uma “obsessão totalitária”, como observou um dos articulistas da revista Veja.

  2. Paulo Roberto disse:

    Professor, não estou muito certo se realmente se trata de um refluxo da violência para áreas menos “visíveis” da cidade do Rio. É certo que há um esforço para “blindar” a zona sul e congêneres, construindo um tipo de “cordão sanitário” em torno delas, tendo em vista a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Sem dúvida, isso deve ter algum reflexo nos números da criminalidade, contudo, me parece que, por enquanto, se trata muito mais de uma hipótese de “segurança subjetiva” do que de real sucesso dessa tentativa. É inegável que existe uma espécie de campanha em prol da imagem do Rio de Janeiro sendo levada à cabo na mídia local. O Globo, por exemplo, dá as UPPs o tratamento de verdadeira panacéia; solução miraculosa para todos os problemas de segurança na cidade do Rio (claro, para o jornal em questão, assim como para os nosso insígne governador, o Estado do Rio não existe…). Não acredito, entranto, que iniciativas com esse cunho “separatista” possam ser bem sucedidas no longo prazo, nem que a extrema “boa vontade” da imprensa possa resistir inabalada durante muito tempo. Como sempre, o tempo irá clarear a situação.

  3. André L. de Santana disse:

    É com grande satisfação que, recebi vosso email e é também com maior satisfação ainda que me deparo com o contéudo aqui posto, apesar de hoje estar fora dos quadros da Polícia Militar, ainda me considero um combatente fiel aos principios dos “Direitos Humanos” para o humano “Direito”, não demonstrando com isso que apoie as ações desenfreadas de violência que acontecem todos os dias e cada vez mais próxima de nossas famílias; quando me puseram para fora da “PMERJ”, o motivo alegado foi a indisciplina, porém,vários mestres da universidade em que estava estudando no curso de “Direito” me disseram apenas que aquilo ali apresentado, tratava-se apenas de um verdadeiro caso de excesso,do uso e abuso de “Poder”,de quem sequer sabia do “mal” que estava causando a um homem de bem, porém “Deus” foi maior,e hoje acredito plenamente que,para o nosso “Estado” poder melhorar,necessário se faz que,a sociedade cobre não apenas do alvo mais frágil da instituição “PM”, o soldado, mas, também dos “oficiais”, que muita das vezes demonstra igual, ou maior despreparo do que os soldados, e ou,praças em geral sobre seus comandos,pois,ainda vemos praticas erroneas,justamente devido ao preparo ineficiente dos oficiais que comandam estes grupos, sem mais, para não me alongar espero não ter parecido um revoltado,com os oficiais, pois conheço e tenho apreço, por muitos dos que ainda estão nas fileiras da “PMERJ”,e tenho ainda a satisfação de receber muitos emails como o seu, espero um dia poder conhece-lo pessoalmente. Um grande abraço André Santana.

  4. Rogério Tavares disse:

    Querido Mestre, acho eu que o saudoso Tom Jobim, era por demais um grande gozador,,, e quando se referiu que ” só se teria justiça social quando todos morassem em ipanema”, quis dizer apenas, que todo o povo de nossa cidade, mereceria, desfrutar da qualidade de vida daquele enamorado bairro, com sua praia, sua vista, suas mulheres, a boa vida, etc., numa redoma de vidro, alienado aos problemas que acontecem lá fora. Isso tudo é muito bonito, e musicado então, deve ficar ainda mais belo. Mas, como Jobim, também às nossas autoridades, vivem um sonho, e pior, parecem que não querem despertar dele. Somos ” todos iguais no sonho, diferentes apenas, no pesadelo.” Obrigado por nos fazer pensar!!!.

  5. José Carlos B. Braga disse:

    Caro Jorge, ainda que com todo este atraso, absolutamente involuntário, creia, não quero deixar de participar, oferecendo minha visão, absolutamente calcada na minha vivência pessoal e profissional. Arrisco-me a afirmar que esse limite bem definido Zona Sul/Zona Norte ( e toda a periferia ) é muito nítido em vários outros aspectos além da questão da segurança. Parece-me não ser novidade para ninguèm que o Rio bem iluminado, bem pavimentado, bem provido de serviços públicos (policiamento, hospitais, coleta de lixo, sinalização de trânsito etc. etc,) enfim, é o Rio turístico, o Rio Zona Sul, semdúvida! Quem, como nós dois, morou por bom tempo nos subúrbios sabe bem o quanto tem de verdade nisso! O Rio cartão postal, belíssimo, cheio de atrações, vivo, cintilante, de natureza exuberante, irresistível enfim é o Rio Zona Sul. O resto da cidade, o Centro Histórico, inclusive, sempre foi relegado a um abandono triste e vergonhoso. Neste aspecto, o mestre Tom, um amante inveterado do Rio, sabia o que estava dizendo!
    Saudações,
    José Carlos.

  6. jorge disse:

    Caro José Carlos,
    O fato de termos visões parecidas sobre a divisão do Rio certamente tem a ver com a nossa origem suburbana. Lamentável é ver muitas pessoas da mesma origem renegarem a sua raiz. Freud deve explicar.

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